Trecho do livro: Sapiens, Uma breve história da humanidade, de Yuval Harari, sobre uma tribo indígena, os achés:
" ... caçadores-coletores que viveram nas florestas do Paraguai até a década de 1960.
... quando morria um membro importante do bando, eles costumavam matar uma menina e enterravam os dois juntos... quando uma mulher aché idosa se tornava um fardo para o resto do bando, um dos homens mais jovens se esgueirava por trás dela e a matava com um golpe de machadinha na cabeça. Um homem do grupo contou aos antropólogos curiosos histórias de seus anos dourados na floresta.
'Eu costumava matar as velhas. Matei minhas tias... As mulheres tinham medo de mim. Agora, aqui com os brancos, fiquei fraco'.
Bebês nascidos sem cabelo, considerados por isso insuficientemente desenvolvidos, eram mortos de imediato. Uma mulher se recorda de que sua primeira filha foi morta porque os homens não queriam mais uma menina no grupo. Em outra ocasião, um homem matou um garoto porque estava de mau humor e a criança chorava. Outra criança foi enterrada viva porque 'tinha aparência engraçada e fazia as outras crianças rirem' ...
No entanto, devemos ter cuidado para não julgar os achés de modo muito superficial. os antropólogos que viveram com eles durante anos relatam que a violência entre adultos era muito rara. Homens e mulheres tinham a liberdade de mudar de parceiros à vontade. Eles sorriam e gargalhavam constantemente, não possuíam um líder hierárquico e em geral rejeitavam as pessoas dominadoras. Eram muitíssimos generosos com suas poucas posses e não tinham obsessão por sucesso ou riqueza. As coisas que mais valorizavam na vida eram as boas interações sociais e as amizades íntimas. Viam a eliminação de crianças, doentes e velhos como muitas pessoas hoje em dia veem o aborto e a eutanásia. Vale notar também que os achés foram caçados e mortos sem piedade por fazendeiros paraguaios. A necessidade de escapar de seus inimigos provavelmente os levou a adotar uma atitude bastante dura com relação a qualquer um que pudesse representar a fraqueza do bando.
A verdade é que a sociedade aché, como toda sociedade humana, era muito complexa. Devemos evitar sua demonização ou idealização com base num conhecimento superficial. Os achés não eram nem anjos nem demônios - eram humanos. Assim como os antigos caçadores-coletores."
Problematizando...
1. Todos os achés cometiam esses atos de extrema crueldade???
Bem, por esse trecho e os relatos contidos nele, nota-se que eram mais comuns de serem praticados por homens e que suas vítimas tendiam a ser do sexo feminino ou crianças...
Todas as mulheres idosas achés que, por causa da idade avançada, apresentavam mais dificuldade para cooperar com o seu grupo, aceitavam o seu destino de serem assassinadas por homens mais jovens??
Provavelmente não. Perceba que, no relato do trecho, um homem, depois de dizer que "matou suas tias" revelou que "as mulheres tinham medo dele...".
É quase certo de se concluir que esses atos cruéis jamais seriam cometidos por indivíduos plenos de suas capacidades racionais.
Transtornos de personalidade, como a psicopatia e a sociopatia, provavelmente já existiam entre os seres humanos pré-históricos, assim como também em comunidades remanescentes de caçadores-coletores. Portanto, mesmo se fossem práticas ou comportamentos "endêmicos", não é possível justificá-los como "apenas cultural", se provavelmente outros membros do mesmo grupo não concordavam/concordam com os mesmos.
Como eu já comentei, em minha crítica ao modo com que o anacronismo histórico tem sido aplicado (tratado como sinônimo de relativismo moral), concluir que atos de crueldade praticados em determinada sociedade, se do passado ou atual, são apenas parte de sua cultura é o mesmo que silenciar vozes que discordavam ou discordam dos mesmos, incluindo, em especial, suas vítimas. É exatamente o mesmo que reduzir a complexidade dessas sociedades a uma suposta conformidade social absoluta, mesmo em relação aos atos mais insensatos, tratando-os como se fossem "práticas culturais" triviais tal como tipos de dança ou técnicas de ornamentação.
2. A maioria das pessoas que, atualmente, são favoráveis ao aborto e à eutanásia, jamais concordariam com esses atos. Primeiro, porque defendem, não pelo aborto em si, mas pela autonomia da mulher em relação ao seu próprio corpo, especialmente quanto à liberdade de poder praticá-lo quando achar necessário ou inevitável. Além disso, aborto não é exatamente o mesmo que infanticídio, ainda mais em casos como os de gravidez de risco ou por estupro.
Segundo, em relação à eutanásia, é importante diferenciar assassinato de idoso, no sentido de geronticídio, que é o homicídio por causa da condição de velhice de um indivíduo, e de uma vontade do mesmo indivíduo em tirar a própria vida, quer seja por doença incapacitante ou outra razão que possa servir como justificativa, inclusive a própria velhice.
Essa foi, com certeza, uma comparação infeliz, ainda que não discorde totalmente desse trecho, pelo que o autor escreveu.
3. Por fim, temos uma tentativa de Yuval Harari, de justificar esses atos ao destacar que, 'fazendeiros paraguaios caçavam e matavam índios achés sem piedade e que, portanto, foram forçados a adotar uma atitude dura consigo mesmos'.
Mas, o que uma menina qualquer, uma criança com um rosto diferente ou um bebê que nasce sem cabelo têm a ver com isso??
Nem nos casos de idosos e doentes, eu poderia apostar alto que era mais complexo do que acreditar que todos da tribo concordavam com os seus assassinatos, mesmo se ninguém expressasse sua discordância, porque mesmo na tribo mais isolada ou com o menor número de membros, é muito provável que não existe "unanimidade absoluta". E ainda me parece exagerado pensar que, apenas uma mulher idosa poderia causar tantos transtornos a um grupo a ponto de não restar outra alternativa a não ser matá-la. Duvido muito que ninguém lamentasse o assassinato de uma pessoa e de forma tão brutal, tal como nos casos relatados de crueldade nessa tribo indígena, e apenas por isso já pode ser um indicativo de que não havia ou não há absoluta concordância. Isso também significa que concepções praticamente universais de moralidade, tal como a empatia, a compaixão e a justiça, também existem em culturas ancestrais, da mesma maneira que existe a crueldade.
...
Será um tipo de falácia??
Eu até pensei em um termo pra ela: "generalização coletiva por ações individuais".
Tal como: alguns indivíduos de uma tribo cometem atos cruéis, recorrentes ou isolados. Logo, esses atos são práticas "culturais" ou da cultura, isto é, da tribo...
Ou, na verdade, atos cruéis cometidos por indivíduos são só isso mesmo??
Até parece um tipo mais sutil de narrativa do "bom selvagem".
Como conclusão, como eu já comentei acima, não discordo de tudo sobre o trecho que selecionei deste livro porque, de fato, não podemos demonizar e nem idealizar sociedades culturalmente distintas das "nossas', mediante a complexidade cultural ou moral e intelectual envolvidas. Mas isso não significa que, então, devemos considerar tudo o que fazem, mesmo práticas recorrentes de crueldade, que não são atos individuais isolados, como "apenas parte de suas culturas", se o ideal seria de tratá-los pelo que são, atos cruéis ou racionalmente injustificáveis, e que foram ou são mais propensos de serem praticados por certos indivíduos do bando e não por todos ou por qualquer indivíduo.
Também é muito importante ressaltar que, assim como os conhecimentos natural e técnico têm evoluído ao longo do tempo, por exemplo, a invenção da roda à invenção do ônibus espacial, o mesmo acontece com o conhecimento moral, complementado pelos saberes de outras disciplinas, de "deus castiga quem apresentar determinado comportamento" para "determinado comportamento é ou não é equivocado pelas seguintes razões objetivas".
Novamente, mesmo se todos de uma sociedade hipotética estivessem aparentemente conformados às suas regras sociais, essa conformidade é quase sempre mais superficial do que genuína, porque no interior de cada pessoa que vive nessa ou em qualquer outra cultura é esperado que existam níveis variados de concordância ao que é imposto, um longo e geralmente silencioso espectro de diversidade de opiniões e pensamentos.
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