A partir do momento em que as pautas identitárias largamente substituíram as pautas trabalhistas na luta por justiça social, a luta de classes deu lugar à de identidades. Em outras palavras, o importante debate sobre as desigualdades sociais a partir de uma perspectiva de classe, passou a ser eclipsado por uma frágil coalizão de frentes alienadas entre si, a feminista, a Lgbt, a antirracista, a ambientalista.. então, invés de irem agregando mais lutas e mantendo em destaque a principal delas, os progressistas têm trocado umas por outras. Ao invés de uma narrativa unificada, coerente e forte, várias pequenas narrativas autocentradas que lutam sozinhas e que, com frequência, se excedem, normalizando equívocos e contradições.
Como consequência, a culpa pela desigualdade social, bem como de outras mazelas, saiu das costas das "elites" política e econômica, especialmente das "conservadoras", e foi parar principalmente nas costas dos "brancos", que foram transformados nos "maiores vilões da história da humanidade".
Mas, quais brancos??
Segundo muitos ativistas antirracistas, todos!! Porque todos os brancos supostamente se beneficiariam de um privilégio branco... se desprezam o fato de que, apesar de injustiças históricas massivas (escravidão) e isoladas (discriminação racial legítima), privilégios de raça estão intrinsecamente associados à classe social, do contrário, brancos pobres e de classe média não seriam explorados por "suas elites".
E para piorar mais um pouco, as pautas identitárias também passaram a ser cooptadas pelas elites neoliberais, porque têm sido úteis no fomento de desunião, animosidade e alienação entre as pessoas comuns, ao invés de uni-las em prol da justiça social.
É aquele rico que diz que a culpa da desigualdade é do branco e não do rico. E ainda posa de ''bonzinho'' na frente das câmeras.
Com a ausência de uma perspectiva dominante de classe, pautas identitárias, como o antirracismo, passam a focar em excesso em suas próprias áreas, resultando em abordagens e medidas que geralmente culpam os sujeitos errados, visando combater injustiças, mas substituindo-as por outras.
Por exemplo, de se separar até 30% de vagas de emprego público para negros e pardos, deixando brancos, sem privilégio branco, em clara desvantagem, com perdão do trocadilho.
O verdadeiro problema não é um suposto complô que favoreceria massivamente brancos sobre negros e pardos no mercado de trabalho, especialmente para os cargos públicos, se os seus processos seletivos se baseiam na aplicação de provas de admissão, que são meios predominantemente justos, porque não discriminam por raça, gênero ou orientação sexual.
O verdadeiro problema é sempre ideológico, sendo que a raça tem sido usada como um de seus maiores símbolos. Porque o que está subjacente é o autoritarismo/ o abuso de poder, a opressão, a exploração, enfim, a perpetuação desta "mentalidade de cadeias alimentares" que, apesar do desproporcional protagonismo histórico de europeus e descendentes nessa "modalidade", não tem preferência identitária. O problema não é uma pessoa ser branca mas usar a sua raça como símbolo estético de opressão prática. Por isso que a melhor maneira de combater as desigualdades raciais é combatendo as sociais, até para não cairmos na falácia da "proporção perfeita", de que a maioria se não todas as profissões/ocupações precisam apresentar uma composição étnica ou de gênero proporcional ao peso demográfico de cada população, desprezando diferenças de proclividades potencialmente mais intrínsecas entre os diferentes grupos humanos.
Aqui, enumero alguns dos problemas que considero como os maiores responsáveis pela precarização do padrão e da qualidade de vida das classes média e trabalhadora, especialmente no Brasil (claro, provocados por essas ideologias "conservadoras"):
- a quantidade insuficiente de vagas para uma demanda maior que, junto com a progressiva mecanização de diversos setores, inevitavelmente resulta no aumento do desemprego;
- a valoração extremamente desigual dos salários,
- a carga tributária injusta que pesa mais sobre quem tem menos,
- o aumento do custo de vida;
- a instabilidade do emprego,
- a normalização do abuso nas relações entre patrão e empregado
e a ineficiência programada, associada ao enxugamento do Estado na assistência à população, em prol da expansão do setor privado, sempre visando o bem ($$) de todos, é claro...
As desigualdades raciais e de gênero apenas seguem essa mesma tendência.
Portanto, o problema não é que, supostamente "brancos" estão ocupando lugares que deveriam ser de negros e pardos, graças a um "racismo estrutural' intacto, resultando nas desigualdades salariais, por exemplo. Mas que faltam vagas de emprego para todos ou ao menos para um número potencialmente maior de candidatos. O mesmo para as universidades. Que as diferenças salariais entre classes sociais sejam tão grandes. Que a carga tributária penalize mais "remediados" e "pobres". Que o custo de vida tenha aumentado tanto por causa da explosão criativa no setor empresarial e consequente crescimento do preço dos produtos, diga-se, uma explosão sem controle. Que a oferta de empregos seja menor que a procura...
E também é interessante observar que, diferente da percepção popular sobre o tamanho do Estado brasileiro, na realidade ele é muito menor se comparado com alguns dos países que apresentam os melhores indicadores sociais, tal como os nórdicos.
Um Estado menor emprega menos e fiscaliza menos. O problema do Estado não é o tamanho mas a ineficiência provocada por tipos corruptos que dominam a sua hierarquia de funcionários. Bastaria acabar com a mamata especialmente no topo e colocar gente de caráter e inteligência que o Estado deixaria de ser sinônimo absoluto de ineficácia e corrupção.Eu já comentei que o Estado é o equivalente ao esqueleto do corpo humano, por ser a estrutura que mantém o organismo social.
As causas para as desigualdades raciais são muito parecidas com as das desigualdades sociais; são multifatoriais e não serão resolvidas com maior representatividade de "minorias' nos centros de poder ou cotas em empregos públicos, se o que mais importa é a capacidade específica, a vontade e a idoneidade do sujeito para o cargo que almeja ocupar e não raça, gênero ou orientação sexual. Rever os métodos usados para a disputa de vagas também deveria estar em debate, como eu já comentei, de se buscar por critérios mais objetivos como no caso do processo seletivo para exercer a profissão de advogado... se a capacidade de memorização de leis é realmente o critério mais importante para quem pretende julgar e aplicar a justiça (de preferência, com justiça) ou se também não seria melhor que fossem avaliados os níveis de racionalidade e caráter dos candidatos...
É perfeitamente válido e necessário combater o racismo, a lgbtfobia, a misoginia, o especismo dentre tantas outras mazelas, mas com leituras ou análises precisas para construirmos abordagens realmente eficientes que não busquem substituir uma injustiça por outra ou que apenas atenuem os sintomas se esquecendo da doença. É evidente que não existe uma real dicotomia entre pautas identitárias e trabalhistas se são complementares. Mas, a partir da hegemonia das pautas identitárias e consequentes excessos, tem-se fabricada uma dicotomia artificial entre elas e resultando na rejeição de uma importante parcela da população quanto às esquerdas, abrindo caminho, tanto para a contínua e perversa hegemonia da "centro-direita" no poder quanto para o avanço da ultradireita nos espaços políticos, que só têm se fortalecido graças aos erros das esquerdas e sua capacidade subdesenvolvida de autocrítica.