Como me tornei ateu?
Eu fui doutrinado pelos meus pais, desde cedo, a considerar as narrativas cristãs mais importantes como verdadeiras, da história de Jesus à existência de paraíso, purgatório e inferno. Fui obrigado a ir à missa, durante um tempo; a fazer primeira comunhão e até crisma. Da infância até à adolescência.
Mas essa doutrinação, que não foi das mais agressivas, não me afetou tanto, porque nesse período de minha vida a religião não ocupava um lugar central na minha mente, assim como hoje em dia. Eu até cheguei a me emocionar com a história de Jesus, particularmente por intermédio de um filme muito bonito, protagonizado por Gary Oldman, como Ele mesmo, e Jacqueline Bisset como Maria. Também já rezei para que o meu pai conseguisse um emprego, algumas vezes fechado no quarto, quando tinha uns 11 ou 12 anos. Eu já acreditei no "poder da oração". Mas não durou por muito tempo...
Ter um irmão explicitamente ateu pode ter me influenciado, mas duvido que tenha sido o único fator que me impulsionou ao ceticismo. Eu sei que foram justamente pelas narrativas cristãs mais específicas que comecei a duvidar da veracidade da religião. Não foi pela crença em um Deus ou na vida eterna e sim que Jesus tenha existido e como um semideus, filho do criador do universo e de uma mulher judia e virgem, que ele tivesse multiplicado peixes, transformado água em vinho, morrido e ressuscitado. A narrativa da criação do universo, com Adão e Eva, a serpente e o fruto proibido, eu também comecei a duvidar, sinceramente, nem sei quando, pois a importância da religião nas minhas primeiras décadas de vida era tão pouca que o meu cérebro não gravou a maior parte desse processo de libertação da primeira (auto)doutrinação ideológica que sofri, bem intencionada, diga-se. Eu até que gostava da ideia de não precisar pensar, de só aceitar essas narrativas como verdadeiras, ainda mais as da existência de um criador de tudo e de vida após a morte. Além de uma abordagem mais racional à minha crença e à crença religiosa, de maneira geral, que parecia inevitável e natural pra mim, em que passei a questionar suas incongruências lógicas que desafiam as leis da física, eu também passei a questionar suas contradições morais e também as de muitos de seus seguidores, ou os que percebia. Por exemplo, eu sempre reclamei sobre ir à missa no domingo de manhã, porque percebia que muitas pessoas iam lá só para fofocar ou para aparecer, tanto é que não era incomum que os figurões da cidade onde vivo até hoje, naqueles tempos sem a epidemia evangélica, se sentassem nas fileiras da frente mostrando o quão socialmente hierárquica era e continua a ser a igreja católica (não é à toa que a igreja evangélica cresceu tanto e principalmente em regiões periféricas). Outro exemplo meu de abordagem crítica às contradições morais das narrativas religiosas foi quando comecei a questionar a bondade absoluta e onipresente de Deus em contraste flagrante à realidade de injustiças sociais e crueldade contra inocentes.
Então, foi um processo lento, orgânico, mas progressivo de conscientização sobre a fraqueza dos argumentos que sustentam a crença religiosa até ao ponto em que, já como um adulto jovem na casa dos 20 anos, me tornei ou me aceitei como agnóstico, especialmente pela rejeição das crenças mitológicas mais particulares, enquanto mantinha as mais importantes, de crença na existência de Deus e da vida eterna.
Outro fator que atrasou o meu caminho em direção ao ateísmo foi justamente a minha falta de identificação com a maioria dos ateus, ou como os percebia, incluindo o meu irmão mais velho. Demorou um tempo até eu perceber que não precisava me identificar com um grupo para me identificar com ideias ou linhas de pensamentos.
Por fim, depois de um tempo como agnóstico, rejeitando, em especial, a ideia de não ter nada após à morte, de nunca mais poder me reencontrar com seres e pessoas muito queridos para mim, emergiu à minha mente uma conclusão muito simples e óbvia que colocou em cheque as bases do meu agnosticismo, de que, após à morte, não há mais nada, inclusive a dor, de qualquer tipo, como a dor da saudade ou da frustração de não poder ter o que se deseja. Ficou mais fácil ou um pouco menos intratável lidar com o que, para muitos de nós, são absurdos inaceitáveis, essas tais verdades absolutas (que eu gosto de chamar de existenciais).
Não ter uma grande rede de amigos, não ter tido uma grande intimidade com a igreja ou a religião especialmente nos meus primeiros 10 anos de vida, também por não ter sofrido uma tentativa de doutrinação agressiva ou profunda, são fatores circunstanciais que podem ter ajudado a seguir essa trajetória de descrença e ceticismo. Mas eu também penso que traços intrínsecos que tenho expressado me influenciaram isso se não foram mais importantes (costumam ser): nomeadamente minhas tendências introspectivas, lógico-raciais ou ao pensamento crítico e ao literal (sem ter necessariamente um déficit em pensamento metafórico, comum em autistas, que facilitasse minha inclinação à literal... pelo contrário, já que também entendo, sei e gosto de usar metáforas).
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