quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Malcolm e a metáfora dos elásticos...
''10 mil horas'' de alegria/naturalidade/motivação intrínseca e não de esforço artificial.
O best seller Outliers, ''fora de série'', do escritor britânico Malcolm Gladwell parece ser muito interessante. Nunca o li e nem tive vontade de comprá-lo porque sei que a premissa fundamental deste livro está predominantemente equivocada. Mas ainda assim se consiste em uma excelente fonte de análise e possível escrutínio, educado, ponderado e necessário, porque suas ideias estão diretamente relacionadas com um dos maiores e mais polêmicos assuntos da modernidade, a dicotomia ''genes x ambiente''.
Gladwell defende a ideia de que o que define o ''gênio'' é fundamentalmente a sua disposição para a prática deliberada e constante de certa tarefa, como estudar matemática ou treinar basquete. A perfeição leva à prática. Ele acertou parcialmente. De fato, quanto mais nos esforçamos para realizar uma determinada tarefa, pela lógica, mais perfeitos, nos tornaremos em sua realização. Isto é, na repetição desta tarefa, por causa da memorização.
No entanto, não será todo mundo que conseguirá se tornar excepcional em qualquer tarefa, na verdade, a maioria das pessoas não serão capazes, nem por esforço deliberado, de atingir ao nível de gênio.
Você pode decorar todas as fórmulas de física e dependendo de sua capacidade de raciocínio, até mesmo se tornar capaz de aplicá-las corretamente. Mas se você não tiver uma disposição cognitiva natural para realizar esta ação, então todo o seu esforço resultará apenas na memorização por repetição e nada mais. ''Você'' pode mudar seus hábitos cotidianos e deixar de fazer certas coisas que fazia antes e com certeza isso terá um impacto na perfeição com que conseguirá memorizar aquilo que se predispôs a fazer. Mas ainda não será suficiente para atingir a um nível de gênio, especialmente se não for um, em qualquer área, ou na área em que decidiu se esforçar.
Também é importante separar as atividades em categorias, mas no final das contas, todas elas serão permeadas por variáveis ou influências universais. São elas
- disposição natural (fisiológica+cognitiva) para praticá-la,
- nível de talento natural (dom) em relação a certa atividade, que poderá fazê-lo: esforçado, talentoso ou/a genial,
- exposição precoce à atividade (especialmente àquelas que exigem o acompanhamento de invenções humanas como instrumentos musicais para que possa ser realizada).
Reciprocidade
Apenas escravos (e estudantes) que são forçados a fazer aquilo que não querem, a todo momento e de maneira imperiosa. A maioria dos ''semi-escravos'' da modernidade, ainda que tenham de prestar serviço ao sistema que os sustenta e os explora, gostam de fazer atividades dos quais possam estabelecer uma relação natural de reciprocidade empática. Tudo aquilo que se faz muito bem é quase sempre fruto de reciprocidade empática, isto é, gostar de praticá-lo. Se não gosta de certa atividade e for irredutível quanto a isso, então será muito provável que não conseguirá praticá-la e conseguir chegar a um nível de excelência.
Dentro deste espectro ainda haverá a tolerância ou tolerabilidade, a capacidade de se tolerar e no contexto deste texto, de se tolerar quanto à realização de uma determinada atividade que não será muito querida de ser realizada, tal como costuma acontecer com a maioria das profissões que são de natureza burocrática. Da tolerância, sairemos da zona de conforto em direção à zona de desconforto, onde que nossos respectivos sistemas mente-corpo sinalizarão com frequência quanto à incapacidade de ao menos tolerarmos certa situação ou atividade.
A grande, se não, imensa maioria das pessoas que são muito boas em matemática, gostam de estudá-la e de praticá-la naturalmente, desde cedo, ou desde quando deixam de lado qualquer tipo de preconceito quanto à matéria/conhecimento e descobrem algum talento maior do que o imaginado/esperado. Mesmo aqueles que não estão ao nível do talento, ''ainda'' precisarão apresentar disposições comportamentais que possam corroborar em reciprocidade comportamental empática. E isso se aplica a todas as outras atividades humanas. Deve sempre haver uma disposição, todo desenvolvimento tem uma faísca/ um início, uma origem. E a origem de todas as capacidades são genéticas, dependem de nós para que possam ser praticadas e desenvolvidas. E isso se aplica a toda atividade humana, assim como também a todas as outras espécies. A faísca que nos motiva a praticar certa atividade, não pode ser apenas o resultado de uma combinação de variáveis ambientais, mas principalmente de uma disposição oriunda de nós mesmos, que nos torna ''viciados'' ou nem tanto para dedicar parte de nosso tempo em sua prática.
A motivação intrínseca é um termo que cunhei, ainda quando escrevia o blogue Santoculto, e se delineia com base na disposição natural, instintiva ou genética para a prática de certo comportamento. Nada daquilo que fazemos, surge do nada ou de ''variáveis ambientais'', mas de nós mesmos, isto é, principia-se. O que diferencia uma atividade da outra, é a que nível de intimidade bio-cognitiva/comportamental (naturalidade) ela se encontrará em relação a nós. Com certeza que para um gênio da matemática, haverá grande intimidade entre este conhecimento em particular e suas disposições/naturalidades cognitivas.
Motivação intrínseca é sinônimo de alegria
Tudo aquilo que fazemos com gosto, que gostamos de praticar, será fruto de disposições naturais ou motivações intrínsecas, que nós apenas expressamos por meio de sua prática deliberada. Quanto maior for a motivação intrínseca, mais íntima ela se tornará em relação ao ser e mais naturalmente praticada será.
A genialidade é natural, se manifesta sem quase nenhum esforço, para a maioria dos gênios. A ideia de que a transpiração seja muito mais importante do que a inspiração para se chegar ao nível de gênio é muito mais provável de se consistir em um mito do que em realidade. A transpiração é um produto direto da inspiração, tal como a faísca é o produto direto do fogo. A inspiração é fundamental, força motivadora para se debruçar sob certa atividade.
Gladwell dentre outros behavioristas, estão parcialmente corretos quanto aos seus pressupostos, ao enfatizarem que a prática seja muito importante para se chegar ao ápice, especialmente em relação ao talento.
No entanto, eles parecem partir de cenários específicos em que uma pessoa qualquer, ''do nada'' ou, influenciada pelo meio em que está, começa a praticar certa atividade e depois de tanta repetição e dedicação, se torna uma especialista na mesma.
Novamente, se não há motivação intrínseca, então não haverá qualquer impulso para a prática. Deve haver uma razão, mas geralmente, a razão se localizará na essência de cada um, especialmente se for muito forte, irresistível e prazerosa, tal como acontece quando se está ao nível do gênio. É tão natural, divertido, que é praticamente impossível evitá-la.
Por isso que a motivação intrínseca, dentro do limite de reciprocidade empática, pode ser considerada como sinônimo de alegria vital, visto que é natural e prazerosa de ser praticada. O gênio, em sua grande maioria (talvez ''unânime maioria''), se dedicará totalmente ao seu objeto de alegria/estudo/realização, não apenas/fundamentalmente por causa de ''condições ambientais favoráveis'' ou por ''prática deliberada'', que não é a causa mas um dos efeitos da genialidade, mas porque lhe será muito natural e divertido de fazê-lo, isto é, inato. Pensar e criar para o gênio é o equivalente ao voar dos pássaros.
O gênio e o talentoso
O gênio está a um nível a mais de naturalidade do que em relação ao talentoso. O talentoso precisa praticar para atingir o seu ápice e emular certas particularidades do gênio, enquanto que este apenas vive o seu dom, aumentando abruptamente a sua chance de transcender o conhecimento que tem intensa intimidade e empatia.
Ainda vale ressaltar que toda a panaceia de conhecimentos e atividades humanas são sofisticações de disposições cognitivas já existentes, como a matemática, a linguagem, a política ou a organização social, a filosofia... e mesmo os esportes ou a música.
Todas as atividades humanas podem ser retrocedidas às suas origens naturais/animais como por exemplo a música em relação ao acasalamento, a política em relação à organização social do ambiente de vivência. Todas essas atividades terão seus homólogos em outras espécies, como a engenharia e arquitetura estão para a teia de aranha ou às colônias de formigas. Menos o pensamento reflexivo, derivado da autoconsciência alargada, que se consiste em uma característica unicamente humana.
Novamente a metáfora dos elásticos e do peso dos objetos dentro de uma piscina
Elásticos maiores tendem a ser mais flexíveis, esticáveis, do que os elásticos menores. E isso pode ser usado como metáfora para as nossas disposições comportamentais ou motivações intrínsecas, isto é, que estão intrinsecamente relacionadas a nós, em termos de essência/biologia. Elásticos maiores representam nossas forças cognitivas ou comportamentais, aquilo que temos mais potencial para ''ser esticado'', enquanto que os elásticos menores representam, por lógica figurativa, nossas fraquezas, aquilo que não temos grande potencial para ser desenvolvido. O elástico pode e deve ser comparado à capacidade e disposição (naturalidade) para acumular uma grande quantidade e qualidade de conhecimentos que se fará convergente entre os tipos mais cognitivamente inteligentes e divergente entre os mais criativos, isto é, os primeiros tem ''maiores elásticos'' (disposição cerebral) para acumular conhecimentos já existentes enquanto que os mais (verbalmente) criativos serão muito mais propensos a acumular ''seus próprios insights criativos'', seu ''próprio conhecimento'' ou criações.
Eu já escrevi alguns textos no meu antigo blogue sobre o assunto usando também a metáfora do peso dos objetos que são colocados na água, se podem ou não afundar dentro de um recipiente ou de uma piscina. Nesta metáfora eu tentei mostrar que tudo aquilo que nos for muito natural de ser praticado, poderá ser relacionado com os objetos que não afundam e que aparecerão boiando na superfície. A expressão ou externalização será constante ou natural. Por exemplo, a capacidade matemática (lógico-dedutiva) de alguém que é muito bom nesta matéria. Outros comportamentos serão meio termo em termos de naturalidade em sua expressão, e o esforço poderá fazê-los emergir à superfície ou a se externalizarem, no entanto que poderá ser apenas artificial e temporário.
A naturalidade exige pouco esforço, obviamente, porque elásticos maiores são mais fáceis de serem esticados em relação aos menores. Maior o esforço concentrado, menor será a naturalidade ou o grau inato de certo comportamento ou habilidade. Tudo aquilo que é natural, obviamente que virá com naturalidade. Neste caso é importante separar o esforço da constância ativa.
Eu, por exemplo, faço pouco esforço para escrever e ter ideias e no entanto, quanto mais tempo eu tenho acumulado no escrutínio dos meus objetos de fixação intelectual, mais insights eu tenho tido sobre eles.
A metáfora dos objetos na piscina ou em qualquer recipiente com água, se refere ao grau de constância expressiva/externalizada dos comportamentos. Ambos são exemplos metafóricos para o mesmo fenômeno, a natureza intrínseca de todos os nossos comportamentos, forças, ''meio termo'' e vulnerabilidades. Os elásticos se referem ao potencial enquanto que a metáfora dos objetos na piscina/recipiente se refere ao grau de hereditariedade.
Malcom Gladwell está certo ao dizer que pela prática, pode-se chegar à ''perfeição'', da ''decoreba'', especialmente. De fato, nós, os ''outsiders'' ou ''outliers'', gostamos de dedicar boa parte de nosso tempo em nossos afazeres que mais nos agradam, no meu caso, escrever textos para este blogue, ter ideias, experimentá-las, pensar profundamente sobre tudo aquilo que é mais fácil de ser entendido, estar sempre analisando o mundo. Isto se consiste em uma atração mútua, a recíproca é sempre verdadeira. Talvez eu gaste muitas horas por dia ''pensando'' sobre os meus interesses de fixação e isso contribua para alimentar, melhorar o meu conhecimento sobre eles, mas também para persistir enquanto que a maioria já teria desistido.
Outras características também são muito importantes como a disposição para independência de pensamento, tentar entender sem buscar por subterfúgios habituais da modernidade, sem querer insinuar que eu despreze aquilo que os outros pensadores tem escrito ou que já escreveram, mas é que eu tenho grande ''dificuldade'' de principiar por minhas investigações sobre a fenomenologia, partindo de trabalhos alheios. Eu apenas obedeço à minha naturalidade cognitiva, que é independente, isto é, busca sempre pela originalidade, a análise crítica com base no meu próprio estilo de pensar e produzir ideias.
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