quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Hoje a pureza morreu

Hoje a pureza morreu

E ontem
E há quinze anos atrás
E há vinte
E a 200 anos atrás
E a 500
E há 2000
E a 5000 anos atrás
...
E continuará a morrer
Ou a ser morta
Pelos infortúnios da vida
Pela gula da morte
Pela luxúria da ignorância ou da estupidez
Pela pureza de quem só sabia sorrir
De ser feliz
Que se contentava com o pouquinho
E que o pouquinho, nas mãos da criança
Tornava um montão, na simplicidade
Na eterna mocidade
De quem esquecia, que a morte está em todo lugar
À espreita
À espera
Do primeiro erro mortal
Da primeira conjugação, de má sorte
Do primeiro caos ou desencontro
A vida é rara, a existência é cheia de morte
A vida é um brilho fraco
Um fósforo aceso lutando contra o frio
A vida é frágil, está sempre a um pavio
E a pureza é ainda mais vida, de cristal
A confundir-se, que vive um sonho
Hoje de manhã uma purezinha morreu
Os seus olhinhos se apagaram pra sempre
Sua breve vidinha cessou
Sua felicidade, eterna, enquanto durou
Seu pequeno rabinho não mais balançou
Seu amor infinito, não mais brilhou
Seu peludo corpinho, não mais pulou
Sua pequena janelinha, sempre ensolarada, se fechou
Numa manhã nublada, no meio ao asfalto, à brutalidade humana
À frieza do chão
Sua pequena alma, se foi
Pra onde não se sabe
Espera-se que, seu sonho, tenha se tornado verdade
Espera-se que, quando morrermos, Deus terá piedade, o que quer que seja,
Será justo, perdoando a todos, culpando a si mesmo,
Mais espinhos, mais pregos, que em cada desgraça, a sua pele arda
Hoje uma pureza morreu
Impurezas também se vão
Mas quando um solzinho se consome, os sentimentos corrompem, sem saber como sentir, se é a revolta ou a tristeza, se apontam os dedos, ou se oferece o colo, mais porquês, com ou sem respostas, respondemos as mais físicas, literais, deixamos em teorias e hipóteses, o que não se pode pensar, do outro lado, sem ser vida, e o que será,
Quem não tem fé prescrita, reza em lamentos,
Chora por dentro,
E difícil ter luto, por quem não preencheu a memória, é mais forçado do que natural, mais perplexo, sem ação, do que em prantos,
Mais desconexo da perda, ainda assim, busca ser discreto, mesmo quando os sentimentos não são sinceros,
Força porque é o certo,
Não chora, não relembra, não pensa na vida, como se fosse parte de si,
Ainda que tenha sido,
Se toda a vida é irmã,
Se somos filhos de sua loucura,
De seus porquês, de seus instintos, de suas correntes,
Se estamos todos acorrentados, se não temos escolha,

Hoje uma purezinha morreu,
E a minha tristeza,
tímida, forçosa, querida, desejada, mas fraca,
Matou parte de mim, e se foi com ela,
Em cada assombro, da própria fragilidade,
Sobre o irmão ou a irmã, que se foi,
Morremos um pouco, sem saber, mesmo sem querer,
Mesmo quando lutamos, mesmo quando rimos ou desprezamos,
Aceitamos ou tentamos nos enganar,
Quando a morte não é humana,
Mas é morte, e foi vida,
Primos distantes, desta grande família,
Desta irmandade vital,
E nós,
Como os primeiros a despertar,
Mais sentimos, por ressentirmos, por chorarmos não uma, mas duas, três, muitas vezes se for preciso, ou se vier pelo instinto,

Hoje a pureza morreu,
E ontem,
e noutro país,
e noutra calçada,
e noutra jornada,
e noutra memória...

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