quarta-feira, 18 de maio de 2016
A fragilidade do gênio
Personalidade, motivação, perfeccionismo versus o pragmatismo da fama ou reconhecimento sem a paixão ou talento intrínseco
No mundo da ginástica artística, especialmente a feminina, que eu tenho tido maior contato ultimamente, dois nomes em especial parecem se sobrepor em relação a grande maioria dos principais nomes do esporte, Elena Mukhina e Ana Porgras, e eu vou explicar o porquê.
Gênio, o inalcançável
Mukhina assombrou o mundo da ginástica ao vencer alguns dos nomes mais renomados e poderosos do esporte em plena era de Nadja Comaneci, sim, ela também, no mundial de 1978.
Uma jovem russa de olhos azuis tristes, pálida e com um sorriso tímido ganhou quase tudo aquilo que poderia ter ganho naquele mundial, "deixando no chinelo" as estrelas do seu time soviético assim como também a super star romena, a primeira a ganhar uma pontuação perfeita no esporte. Eu poderia estar falando dela, de Nadja Comaneci, como um exemplo do gênio, e talvez até possa coloca-la na mesmíssima categoria, mediante o grau de perfeição de suas performances durante o ápice de sua carreira. Mas existiu algo de especial em Mukhina que na minha opinião a fez brilhar mais do que Nadja.
Comaneci foi um dos primeiros e muito bem sucedidos frutos de um projeto de longo prazo por parte da junta técnica romena para fabricar ginastas tecnicamente perfeccionistas e até agora tem dado excepcionais resultados.
Ainda assim Mukhina a meu ver se destacou por causa de seu pioneirismo no nível de dificuldade na época em que competiu, a sua rápida alçada ao olimpo do esporte, justamente em uma época com tantos nomes extremamente renomados competindo, assim como também por sua derrocada ou queda abrupta, que ceifou a sua carreira levando juntamente a normalidade funcional de sua vida (ao se tornar tetraplégica depois de um acidente grave em um treino, semanas antes do início das olimpíadas de 1980 em Moscou).
A sua personalidade e a sua motivação para uma profunda ou perfeccionista superação, a fez, mediante a minha pedante ótica, superior mesmo em relação aos grandes nomes da ginástica, por seu pioneirismo e estreia avassaladora no sênior, se destacando a frente de nomes que já haviam se consolidados dois anos antes. É como se diante de um colosso recém aclamado outro aparecesse na surdina e roubasse totalmente a cena.
Mas não foi apenas o contexto de Mukhina que foi excepcionalmente assimétrico e portanto extremamente interessante (e claro, muito trágico), do auge à ruína em pouquíssimo tempo, mas também a sua personalidade e o seu talento que a separaram de Nadja bem como também das demais.
O perfeccionismo é um traço extremamente necessário para o talento de alto nível e nem preciso citar o gênio. E Mukhina encarnou esta realidade como ninguém naquela época, se esforçando além das circunstâncias e resultando em um desastre que ceifou o resto de sua vida. A busca frenética, imparável e constante da perfeição, especialmente em relação ao grau de dificuldade em que se arriscava, foi o diferencial, a tendência do gênio de se jogar numa roleta russa, de apostar o tudo ou nada e de pagar pra ver. Ela pagou o preço por seu transe megalomaníaco, alimentado por seu técnico matoide Klischenko, um dos facínoras (e brilhante em sua função) que reforçou a tendência proto-suicida e potencialmente genial de Mukhina de apostar alto.
Sem a sabedoria para auxiliar e ajudar o gênio, as chances de se arriscar demais serão muito altas. Quem sabe os novos feitos que aquela ginasta russa, outrora mediana e pouco empolgada, poderia ter feito se não tivesse se acidentado terrivelmente, dando cabo de sua carreira e de seu conforto existencial??
Mukhina nao foi a ginasta de notas "10" até porque deixou claro que sempre preferiu flertar com o perigo do pioneirismo em exercícios jamais realizados sem falar naquela que talvez poderia ser definida como a rotina de barras assimétricas mais difícil da história da ginástica. Ela também foi muito elegante em seus passes, completa em todos os aparelhos e sim, a sua ascensão e queda meteóricas, tornou-a dramaticamente interessante. A paixão pela perfeição destacou Mukhina e a lançou a um posto em que poucos e bons tendem a conquistar, o olimpo da genialidade. Ela pode não ter sido a mais genial nem a mais sábia, nem mesmo a mais perfeccionista, nem mesmo a mais elegante, ainda que tivesse esbanjado também neste componente. Mas a sua busca pela excelência em sua área e por sua ênfase com certeza, ao menos pra mim, a colocou em um nível extremamente singular de expressão humana, direcionada para uma atividade físico-recreativa.
Enquanto que lamentamos a vida delicada que vivenciou desde o acidente bem como também a morte precoce de Mukhina, que pagou alto o preço de sua melancólica arrogância na tentativa de superação perfeccionista, um dos traços magnos do gênio ou de quem se deixa ser possuído por este estado mental, transcendental, outra ginasta que vejo como do mesmo quilate que da pobre Elena, também encantou o mundo da ginástica por sua extrema elegância artística, impecável em sua composição, esboçando a expressão pura do gênio neste aspecto específico, e que decidiu abdicar voluntariamente de uma carreira completa e potencialmente frutífera, por uma vida, até agora difícil de ser, entendida e aceita, especialmente por seus fãs mais exaltados, se tais fotos que tem viralizado em blogues especializados do mundo da ginástica, de fato, exprimem o atual cotidiano desta bela moça.
Ana Porgras teve uma carreira meteórica, como a de Mukhina, se destacando por uma elegância tão impecável em sua composição, especialmente nos seus primeiros anos como ginasta profissional, que a partir de minha ótica, a alçou ao olimpo do, por agora e talvez pra sempre, inalcançável manifestação de excelência perfeccionista. Ana Porgras se tornou inalcançável por sua singularidade, sua imparidade de extrema qualidade, em fundamental, por seu talento artístico perfeitamente combinado com a ginástica. Algo de especial caracterizou Porgras durante a sua curta carreira, tão impressionante que arrebatou uma legião de fãs e chamou a atenção mesmo de grandes nomes do esporte, justamente aqueles que foram ofuscados pela meteórica Elena Mukhina, de décadas atrás.
Um brilho único, difícil de ser mensurado, uma mágica no ar, claro que bem reforçado por seu talento TÉCNICO. Mas foi a composição de personalidade, elegância e talento que fez tanto de Mukhina quanto de Porgras inalcançáveis e portanto geniais em suas apresentações e a posteriori realizações. Quanto de mérito que podemos dar aos seus técnicos, e no caso de Mukhina, culpa, apenas para começar, eu realmente não sei. Se foram produtos finais de uma sinergia perfeita entre técnico e esportista e portanto menos geniais na criação e mais na expressão ou representação da mesma, também não sei dizer. No entanto, a qualidade, original ou nem tanto, de ambas, foi tão acachapante e rara que é pouco provável que pudéssemos ser capazes negar-lhes a alcova de geniais.
E em ambas, em níveis bem distintos de qualidade (epicentro na elegância de Porgras, e de dificuldade de Mukhina), auge e tamanho da queda, todas as idiossincrasias da intensidade perfeccionista e inquieta do gênio bem como também o tipo de personalidade que tende a comporta-lo, especialmente em termos de gênio artístico e sinestésico, foram visíveis e marcantes para o desabrochar de seus talentos que tocaram por suas respectivas maneiras o céu da perfeição.
O gênio faz com paixão e sutileza perfeccionista. O competente faz desapaixonadamente.
Os geênios sem alma e atrito perfeccionista
Simone Biles é produto direto de um sistema que foi viciado para sempre vencer, a ginastica artística profissional americana, que de artística não tem quase nada.
Biles é tão perfeita que nem parece humana. Sorriso perfeito e séries perfeitas, mas que não são perfeccionistas. Sem maiores ambições Biles parece estar feliz com as suas séries perfeitas, diga-se, tecnicamente perfeitas. Ela é muito talentosa e mediante tamanho talento eu até poderia coloca-la ao posto de gênio técnico da atualidade. Mas tem algo nela que não é impressionante como a inalcançável beleza da elegância de Porgras ou o nível de dificuldade acoplado a uma elegância sóbria de Mukhina.
Ela não parece ter o desejo louco de gênio de se superar.
A formula americana é assim e até pode ser definida como sábia ainda que bastante pragmática, no país cuja alma já é capitalista. A ou o ginasta trabalha até ao ponto de sua excelência e quando chega ao teto pessoal de talento técnico para por ai, mantendo uma constância sem maiores riscos. Parece um padrão recorrente.
Americanos sempre parecem ser muito profissionais, quase sempre polidos, com poucas chagas internalizadas em suas vidas ou aquela intensidade, aquela paixão que é bem típica do gênio ou aquele que tem potencial para esboçá-lo, mesmo que dentro de uma particularidade expressiva, no caso do esporte.
Populares, neurotípicos, adaptados, bem estabelecidos.
Pouca personalidade e um esbanjar de maestria no aprendizado técnico, enquanto que o gênio artístico se caracteriza pelo exato oposto, fazendo fluir e dominar a si próprio, o singular de cada indivíduo, em outras palavras, fazendo a sua singularidade lhe dominar.
Os ginastas americanos em geral parecem lidar com a ginástica, a profissão que escolheram, exatamente como um típico burocrata, isto é, de maneira fria, desapaixonada e rotineira. Eu posso estar sendo muito generalista e preconceituoso em relação a eles, mas me passam esta impressão, enquanto que quando tem paixão relacionada à atividade escolhida, um brilho a mais é o mais provável de se manifestar e de maneira inevitável.
Por mais bem sucedidos, mais medalhas, por mais notas perfeitas possam alcançar, algo de cinza, de sem graça, sem brilho, sempre pareceu caracterizar ao menos uma importante proporção do povo americano.
É a composição que produz o talento genuíno, que toca o gênio, e o mesmo em esportes como a ginástica artística, isto é, uma atmosfera especial, que todos podem perceber, alguns podem até negar por ''dor de cotovelo'' ou inveja, mas que existe, é único e portanto genial.
Mustafina
O gênio que se perdeu??
Aliya Mustafina, ginasta que já citei no velho blogue, assombrou o mundo da ginástica logo em seu primeiro mundial em 2010. Ela foi precoce mostrando alto nível mesmo quando ainda era muito jovem, diferente de Mukhina que foi descreditada no inicio de sua carreira. Espantou o mundo da ginástica e depois de um grave acidente mudou de postura e deixou de tirar o fôlego dos aficionados pelo esporte ainda que tivesse por contrapartida conquistado muitos fãs. Mustafina é um perfeito caso de talento técnico tipicamente americanizado, mesclado à naturalidade da qualidade de gênio ou por um potencial para esboçá-lo, e sua carreira, até agora, mais parece mostrar com fidelidade o apagar das luzes espontâneas do brilho do seu gênio e a sua brava transição para sobreviver em um mundo em que as expectativas sobre si não foram plenamente satisfeitas e o tem feito com elegância, astúcia e certa maestria.
O gênio de Mustafina esfriou antes de atingir a todo o seu potencial ainda mais em uma profissão ingrata como é a ginástica artística. Apesar disso ela exibe juntamente com a sua colega russa Viktoria Komova os atributos de personalidade que tendem a caracterizar meios-gênios ou aqueles de menor envergadura, se comparados aos catataus do mundo intelectual, científico e/ou tecnológico.
Komova é outro exemplo de alguém dentro da ginástica que está dotada de uma personalidade intensa, perfeccionista (mas talvez não aos níveis inalcançáveis/únicos de Mukhina e Porgras) e um brilho de gênio que mostrou logo no início de sua carreira mas que também foi reduzindo a sua força com o passar do último ciclo olímpico.
Parar cedo nos faz eternos??? O impacto da abrupta interrupção de um carreira promissora e excepcional nos impressiona mais??
Correlação ou causalidade. Ou são os super talentosos e geniais que são mais propensos ou vulneráveis a interromper as suas carreiras??
Para muitos casos o fim abrupto e precoce de um talento promissor ou mesmo ainda em sua encubação necessariamente não deseja indicar que o mesmo teria sido esplendoroso se tivesse continuado a manter-se em sua trajetória.
No entanto me parece que para muitos outros casos de fato a precoce interrupção de suas trajetórias merece mais lamento pelo fato de ter encurtado muito cedo um potencial sem limites pré- estabelecidos, outro diferencial do gênio.
Mukhina mostrou talento de sobra a ponto de ter "esnobado" a super star romena do momento bem como também todas as suas colegas mais famosas e bem sucedidas. Se não tivesse se acidentado miseravelmente talvez tivesse mantido neste ritmo frenético (acoplando mais dificuldades para as suas séries e foi justamente um dos novos e ousados elementos que ceifou pra sempre a normalidade de sua vida) .
O mesmo para Ana que ao longo de sua curta carreira foi mostrando cansaço crescente por causa de suas atribulações enquanto uma esportista em ascensão. Sempre se esforçando além de suas próprias forças, Ana parece ter decidido parar no meio de uma carreira que já havia causado furor no ambiente profissional da ginástica feminina. Em seu últimos anos no entanto continuou mostrando a sua famosa e amada excelência na parte artística, sua qualitativamente singular e inalcançável elegância no solo assim como também na trave e mesmo nas barras assimétricas.
A naturalidade perfeccionista inalcançável do gênio versus o estudo meticulosamente planeado do talento
O talento tenta sempre emular o gênio, consistindo-se em uma tentativa de cópia daquilo que foi original e único.
Pelo fato de ter o fator artístico acoplado a si, a ginástica olímpica precisa muito de seus aspectos, até mesmo os mais importantes para que se completar. As ginastas mais geniais (e mesmo entre os homens) não serão por lógica intuitiva aquelas com as maiores dificuldades nem mesmo as mais elegantes mas as que conseguirem combinar arte e dificuldade de maneira mais perfeita. No entanto o gênio ou a expressão do mesmo não obedece a lógica semântica de nenhum outro elemento a não ser de si mesmo. E neste aspecto, uma série de fatores únicos corroboraram para que tivesse chegado a essa conclusão no que diz respeito a ginástica artística feminina e às duas ginastas protagonistas deste texto.
Como a inteligência que é aquilo que sabemos o que é quando a vemos, mas não sabemos dizer com supra-exatidão no que se consiste, o mesmo pode ser dito sobre talento e genialidade em que apenas uma sutileza milimétrica, rarefeita porém consistente que poderá separar talento puro ou emulação perfeccionista do gênio e o próprio gênio ou superação qualitativamente perfeccionista.
De tantos nomes deste esporte extremamente difícil, politicamente enviesado (que sempre o desgraçou), uma ode à capacidade de se superar os limites de elasticidade, força e movimento do corpo humano, eu escolhi essas duas que conquistaram a minha atenção e que parecem ter causado profunda impressão também em outras pessoas, por uma série de razões subjetivas, que poderiam muito bem colocar à prova a minha afirmativa ou conclusão neste texto, de que apenas ou especialmente as duas que mereceriam repousar no olimpo do talento extremo, que toca o céu do gênio, e que até cheguei a comentar ao longo deste texto. No entanto, algo mágico, único, singularmente especial, e com todas as adições ou circunstâncias subjetivas a seu dispor, conspiraram, ao menos ao meu ver, para ter resultado na expressão das nuances sutis, poderosas e típicas do gênio, esta composição fenotípica única, nestas duas jovens, separadas pelo espaço e tempo, ao invés de ter pensado o mesmo para tantas outras bravas ginastas (e também ginastas masculinos, alguns nomes me vieram à cabeça como o italiano Yuri Chechi, espetacular nas argolas por um bom tempo e inalcançável em relação à extrema naturalidade com que se apresentou neste aparelho). Se foram apaixonadas em seus momentos enquanto ginastas, ao mesmo nível que muitos gênios incontestáveis dos mais diversos ramos foram, eu não sei, existem algumas possíveis evidências, especialmente para a pobre Mukhina, que até poderia ter sido homenageada em algum romance russo, por sua vida, sempre sofrida e triste, com poucos momentos de alegria. No mais, os resultados ou expressões de seus esforços foram e são incomparáveis, algo que se tornou único, singular, tamanho o grau de qualidade, em sua sutileza, em sua excelência.
Algumas fotos recentes de Porgras são muito estranhas, o rosto saudavelmente belo, com feições classicamente caucásicas, parece ter se transformado em muitas faces, algumas muito vulgares e chocantes para quem já havia se acostumado com a sua beleza natural.
O gênio não é frágil apenas em relação aos que estão mais suscetíveis de serem tomados por ''ele'' ou por si mesmos, mas também em relação à sua manifestação ou expressão, por se consistir em uma originalidade extremamente nova ou numa qualidade tão única que não pode sequer ser enquadrada dentro de números frios.
O gênio escondido e finalmente expressado de Mukhina lhe causou danos irreparáveis e que resultaram em um resto de vida bem complicado pra ela. O mesmo pode ser dito em relação ao seu fantástico técnico.
A mesma personalidade soberba, arrogante, artística e fina que Porgras expressou, especialmente em suas belíssimas apresentações de solo, nos fazendo voltar á belle epoque de Paris e Viena, pode também estar tendo um papel em suas decisões pessoais.
A intensidade e o potencial sem limites pré-estabelecidos de ordem qualitativa do gênio ''ou de alguém que exibe potencial raro para expressá-lo'' tende a ser sempre uma faca de dois gumes, onde brota o gênio também pode brotar a insanidade.
Na atualidade, a ginasta islandesa Eythora Thorsdottir, ambientada na Holanda, parece expressar muitos componentes de sutilezas singulares que compõe a expressão da genialidade artística.
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